A Barreira Invisível
Contágio, confinamento, covid, Sars-CoV2, RT, cerca sanitária, PCR, antigénio, et coetera. Ainda no primeiro trimestre de 2020 começamos a ser inundados por uma bateria de acrónimos e lexemas que, na sequência do surgimento do coronavírus, se foram multiplicando, insinuando e tomando conta do quotidiano à medida que os meses passavam. Digo surgimento e penso imediatamente estar a errar e a aproximar-me das muitas dúvidas que este ano trouxe ou exacerbou. Com excepção daqueles que trabalham em laboratórios e que conseguiram sequenciar o vírus, quantos podem dizer que viram o vírus?
Na verdade, a maioria viu, sentado em frente do seu monitor, imagens possíveis – umas mais realistas, outras mais cartoonizadas – de uma espécie de esfera com espigões. Reproduções que visam tornar visível o invisível a olho nu. E uma vez no monitor, o vírus estava em todo o lado e em lado nenhum. Dentro e fora de cada um. E com ele o medo. Não o medo saudável que anda de mão dada com a autopreservação sem deixar de olhar à preservação do outro, mas o medo de ter medo. O tipo de medo que coloca os neurotransmissores ao serviço da caça ao papel higiénico.
Perante um inimigo invisível, todas as superfícies se tornaram potencialmente nocivas, incluindo o corpo do outro, a pele do outro. Todas as superfícies excepto aquelas em que a “superfície de inscrição” (Virilio 1993: 9) aparenta anular a distância, ao mesmo tempo acedendo, em relativa segurança, a uma “difusão instantânea” (ibid., 10). Mas se os telemóveis, tablets e computadores serviram como lenitivo – entre o lazer e o conhecimento –, rapidamente passaram a uma espécie de mælstrøm de desinformação. As redes sociais deram, numa escala preocupante, palco a relativistas e negacionistas cujas publicações alcançaram milhares e milhares de pessoas.
Perante um vírus – que não conhece fronteiras nem tem moral – tornou-se mais premente o uso das tecnologias disponíveis para agilizar o dia-a-dia, tanto ao nível social quanto ao nível íntimo. Tele-trabalho, compras online a disparar, sites de pornografia com visitas diárias a ultrapassar todos os registos imagináveis, aulas e conferências através de plataformas como o Zoom ou o Teams, tudo tentativas de manter a normalidade enquanto as diferenciações público/privado e otium/negotium se esbatiam rapidamente. Uma vez suspenso o “subúrbio do tempo” (ibid., 11) que seria votado a férias e lazer, por via do confinamento ou de restrições à circulação, a casa tornou-se uma interface sem superfície-limite na qual, como nos monitores, é sempre dia.
Žižek, em livro saído em maio deste ano, cita Byung-Chul Han, que lembra que vivemos para a auto-exploração, o que compulsivamente leva à subjectivação e à subjugação. Mas enquanto o ensaísta sul-coreano aponta factores internos para essa exploração e subjugação, que culminam numa sociedade do cansaço, o ensaísta esloveno lembra que nesta nova fase do capitalismo global, que continua a ser um sistema de classes repleto de desigualdades, as lutas “não são de modo algum redutíveis ao nível intra-pesssoal” (Žižek 2020: 22), lembrando todos os trabalhadores que não podem exercer as suas funções isolados em frente de um computador.
Do pessoal médico e auxiliar, das linhas de montagem fabris, com a sua exasperante repetição, àqueles que, no atendimento ao público, ou no jardim de infância, ou num lar de idosos, devem mostrar empatia e simpatia mesmo à beira do burnout, os exemplos serão muitos. Para Žižek, apenas alguém que fosse o seu próprio patrão caberia na noção de auto-exploração de Han. Nem mesmo os “criativos” das empresas, responsabilizados pela boa ou má comunicação, poderiam estar naquela categoria, porque subordinados ao capital. Com a pandemia, as divisões de classe tornaram-se ainda mais vincadas e poucos serão os que sobreviveriam à pandemia num confinamento prolongado.
E se o trabalho – como a História nos ensinou – não liberta, torna-se evidente que nunca estivemos todos no mesmo barco. Para impedir que a pandemia se torne numa catástrofe económica, Žižek propõe uma Europa fortalecida por uma “unidade operacional” (ibid., 35) que lidasse efectivamente com a crise dos refugiados, em vez do “humanitarismo abstracto” (ibid.) que não desculpabiliza o facto de grande parte do sofrimento nas nações mais pobres ser resultado do colonialismo e do racismo. Por entre fake news e as mais alucinadas teorias da conspiração, soma-se ao combate à pandemia o combate aos vírus ideológicos.
Terá o coronavírus desferido um golpe mortal no sistema capitalista global? Žižek parece acreditar que sim. O ensaísta propõe mesmo que a OMS passe a ter mais poder executivo e reitera a urgência de uma rede global de cuidados de saúde, enquanto antevê ainda a queda do partido comunista chinês. Com as interacções mais elementares afectadas, afectada a relação que temos com o nosso corpo, o caminho não será fácil. A economia global teria de ser reorganizada para não estar à mercê de mecanismos de mercado. Comunismo sim, mas não o velho comunismo.
Apreciemos ou não a proposta avançada por Žižek, certo é que este “animismo capitalista” (ibid., 44), com mercados em pânico, não estava preparado, apesar dos avisos da comunidade científica (apesar de obras escritas a pensar no grande público como Spillover de David Quammen), para lidar com uma pandemia. Nem é certo que agora consiga sequer correr atrás do prejuízo. O primeiro passo, o passo que cada um de nós deveria dar antes de qualquer mudança externa, deveria ser o de aceitar que os vírus sempre existiram e continuarão a existir e que “uma estúpida contingência natural como um vírus ou um asteróide” (ibid., 52) pode pôr um fim a tudo. E que isso não tem, não terá um significado oculto.
Não se trata de resignação, mas de aceitar a realidade. Aceitar a necessidade de uma mobilização privada e estatal e da partilha de informação. De uma solidariedade global. Consideremos ou não utópica a proposta, tê-la no horizonte enquanto modelo ideal apenas nos faria bem. Agamben mostrou, ainda em março, preocupação com as medidas que considerou excessivas, colocando em causa decisões estatais (link na bibliografia). Porém, se estava certo ao assinalar o perigo de uma sociedade-panóptico, em que vigiar e punir (para recuperar aqui um título de Foucault) se torna o novo normal, apressou-se ao equiparar o vírus a uma gripe e foi duramente criticado pela comunicação social italiana, esclarecendo e matizando posteriormente a sua posição (link na bibliografia).
Žižek não desvaloriza as considerações do autor de Homo Sacer e esclarece que um estado de medo, um pânico colectivo, rapidamente coloca em marcha um aumento do controlo estatal e, em paralelo, uma desconfiança no poder do estado. Mas, como o coronavírus demonstrou, até o estado pode ficar em pânico. E o único modo de combater um medo generalizado é com solidariedade. Também em março, Jean-Luc Nancy escrevia um artigo para o Liberátion, no qual parecia aproximar-se mais do pensador esloveno. Seguindo a sugestão de um amigo, propõe que falemos de um “comunovírus” e não de coronavírus (link na bibliografia).
Jogando com o prefixo proposto, Nancy sugere abandonar o termo “corona”, de pendor imperialista, e apresenta aqueloutro que coloca a tónica nos conceitos de comunismo e de comunidade. O pensador francês reflecte sobre o comunismo chinês, explicando que, embora o comunismo consista essencialmente na abolição da propriedade privada, o comunismo chinês tem consistido numa cuidadosa combinação de propriedade colectiva ou estatal e propriedade privada. Isto explicaria, pelo menos em parte, o crescimento económico da China. Nancy interpela o leitor a decidir se uma sociedade como a chinesa pode ser designada verdadeiramente comunista, quando a competição individual é levada a um extremo ultra-liberal.
Á nossa consideração fica ponderar, por um lado, um poder autoritário cuja efectividade na luta contra o coronavírus ficou bem demonstrada, enquanto por outro o mesmo autoritarismo torna opaco o termo “comunismo”. Mas, implicitamente, Nancy responde ao lembrar que Marx desejava que os indivíduos se tornassem plenamente em si mesmos, que se realizassem. Essa realização não parece possível numa China que prende jornalistas e prossegue o extermínio dos uigures perante o olhar distante das outras nações, o que nos leva a ponderar a outra possibilidade do prefixo: a de comunidade. União contra um inimigo comum. Uma união que, paradoxalmente, nos exige distancimento.
Nancy, à semelhança de Žižek, desagua na solidariedade e sugere que talvez o isolamento nos permita pensar melhor a natureza da nossa comunidade. Mas como pensar a comunidade quando o vírus ocupou um lugar de representação na sociedade? Entre um modelo de vigilância e um modelo de bem-estar, o denominador comum é ainda o vírus. Um vírus que transcende as noções de propriedade enquanto nos impede de nos realizarmos em comunhão. Suspensa a ideia de “troca” não-comercial, com o valor da partilha remetido a monitores, cada um deve fazer apenas o que pode para debelar a pandemia, mesmo que isso signifique estagnar.
Nancy procurou, ainda em março, lembrar o quanto a linguagem condiciona o nosso pensamento, a nossa realidade, a arquitectura das sociedades. Procurou descolonizar a língua, limpá-la de vírus ideológicos. Mas por cada Nancy, há milhares de cidadãos mais ou menos anónimos com acesso às redes sociais, ansiosos por caos, ainda que isso signifique ser contra o uso de máscaras, contra o distanciamento social, contra as vacinas. Os mesmos anónimos que abrandam prazerosamente ao passar por um acidente e que povoam as caixas de comentários incapazes de pensamento crítico. E não se iludam: são de todos os quadrantes.
Negacionistas uns, relativistas outros, dia após dia seguindo figuras mais ou menos públicas que irresponsavelmente vão desinformando quem os segue. E, embora nos monitores seja sempre dia, estes cidadãos ainda não saíram da caverna platónica e deleitam-se com sombras. Não percebem que cada suspeita, cada dúvida – legítima ou não –, cada rumor propalado instila a desconfiança e o medo. Um medo, como esclarece José Gil (ver abaixo o link para o artigo publicado no Público e entretanto reunido em livro) que “rebenta com o sentido e quebra o nexo do mundo”. Para o pensador, o vírus veio mostrar, ante os disfuncionamentos dos serviços e a falta de solidariedade, que “qualquer coisa de profundamente errado infectou, desde o início, a história dos homens”.
Para José Gil, o vírus não veio colocar em causa a civilização, mas as suas formações de poder e, com estas, “o desenvolvimento de laços sociais cada vez menos aceitáveis”. Divididos entre a solidariedade, a pertença a uma comunidade, e o incitamento ao isolamento a solução parece estar, pelo menos temporariamente, na “acção de governação de um líder firme”. Ao cidadão comum compete então combater o medo da morte, recusando a passividade e procurando conhecer o inimigo. Combater este medo que não é o “mal final”, mas a “letargia absoluta” que veio ocupar o quotidiano.
Perante o comprometimento do “laço social”, perante as condicionantes impostas pelo vírus, José Gil assinala uma “transformação na percepção que se tinha da globalização”. Pelas piores razões, o mais comum dos homens tem agora a experiência da globalização: “Vivemos todos, simultaneamente, o mesmo tempo do mundo”. Para o pensador, isto exacerba a consciência de uma comunidade nua. Mas a interdependência das nações, ou o trabalho em rede dos cientistas, podem levar à criação de poderes transnacionais. Apesar de tudo, bons sinais que podem beneficiar a luta contra as alterações climáticas. Importa resistir. Com conhecimento, entreajuda e racionalidade.
Mas será que retiraremos algum ensinamento do aproveitamento que o vírus levou a cabo ao percorrer o “mapa mundial da desterritorialização”, i.e., da disseminação acelerada e imprevisível graças às grandes massas de turistas, homens de negócios, estudantes, multidões de migrantes a fugir da fome e da guerra? Se aquilo em que o capitalismo global nos tornou foi simultaneamente o nosso calcanhar de Aquiles, será que as subjectividades agora reterritorializadas no mundo digital nos trarão equilíbrio ou mais insegurança? A supressão do corpo de um número cada vez maior de actividades e o desenvolvimento da inteligência artificial trarão benefícios ou novas formas de auto-exploração?
Enquanto a vida se virtualiza cada vez mais e se torna cada vez mais evidente que esta nova crise não pode ser separada da crise ecológica, não podemos esquecer o papel da educação económica, política e ecológica, tão-pouco o papel da ciência. Não podemos esquecer aqueles que a pandemia desempregou e irá desempregar. Não podemos esquecer os médicos, os enfermeiros, o pessoal auxiliar que, para lá dos seus limites, continuam a salvar vidas. Para que um dia o nó górdio de “economia vs. saúde” seja desatado, para que a democracia subsista e continue a permitir discursos negacionistas, para que um dia as máscaras sejam um memento mori e não um óbolo de Caronte.
Para que a morte recupere os seus ritos, para que os mortos possam surgir e ser velados, para que a “repugnância crescente em admitir abertamente a morte” (Ariès 2010: 201) se restrinja ao pudor familiar e não acabe em valas comuns ou em cinzas não desejadas, para que “o isolamento moral imposto ao moribundo por esta repugnância e a falta de comunicação que daí resulta” (ibid.) dêem um passo atrás, para que “a medicalização do sentimento da morte” (ibid.) seja mais humanizada. Por tudo isto me parece que o sequenciamento do vírus é o mais belo poema de 2020. E que a palavra do ano deveria ser “vacina”.
Para, apesar das máscaras que ainda teremos de usar por muito tempo, podermos pensar em pneuma e a essa palavra associarmos o espírito, o tecido do próprio cosmos, como acreditavam os gregos antigos, ao invés de um miasma morto-vivo. Porque esta ainda não foi a nossa hora final, nem sequer uma hora-zero. Porque não estamos num video-jogo em que temos de recolher coisas para conseguir ultrapassar uma barreira invisível, nem tão-pouco num filme de Aronofsky em que a mãe-Terra se vinga da Humanidade e recomeça. É a nossa sobrevivência que está em jogo, somos nós o nosso próprio inimigo, a barreira invisível é o medo e o pensamento mágico não tem lugar numa luta encabeçada pela ciência. Assim como o princípio do prazer freudiano, pelo qual muitos parecem reger-se exclusivamente, ignorando a realidade e colocando outros em risco.
Seguindo a sugestão de Žižek, regresso a Kant, para vos dizer que “no sistema da natureza, o homem é um ser de escassa importância e tem com os restantes animais, enquanto produtos da terra, um valor comum” (Kant 2005: 366), para vos dizer que “a humanidade na sua pessoa é o objecto do respeito que ele pode exigir a qualquer homem; respeito do qual ele não há-de também despojar-se” (ibid., 367) e para vos sugerir que, sem serem escravos, sejam “económicos, para não chegarem a ser pobres de pedir” (ibid., 369).Porque este texto tomou proporções inesperadas, vejo-me obrigado a um fecho mais ou menos abrupto. Não sem antes vos lembrar (e que me desculpem os que aqui chegaram se isto vos cheira a moralia bafienta) que a literatura é uma farmácia para a alma, mas que devem confiar nos homens da ciência e não em vendedores de banha da cobra (venha ela em frascos ou em discursos ideológicos), e que, mesmo perante as maiores adversidades devemos abrandar e, como Glauco e Diomedes, no canto VI da Ilíada homérica, reconhecer o Outro. Porque a hospitalidade não é uma moda, porque a alteridade não é fácil mas urgente e algumas tradições, alguns rituais, como parece sugerir Han num dos seus livros recentes, são para manter.
Biblio-web-grafia:
Agamben, Giorgio, L’Invenzione di un’epidemia, disponível para consulta em
https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia
_______________, Chiarimenti, disponível para em https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-chiarimenti
_______________, Contagio, disponível em
https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-contagio
Ariès, Philippe, Sobre a História da Morte no Ocidente, 4ª ed, Teorema, 2010, Lisboa
Gil, José, O Medo, disponível em https://www.publico.pt/2020/03/15/sociedade/ensaio/medo-1907861
_______, A Pandemia e o Capitalismo Numérico, disponível em https://www.publico.pt/2020/04/12/sociedade/ensaio/pandemia-capitalismo-numerico-1911986
Kant, Immanuel, A Metafísica dos Costumes, 1ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, Lisboa
Nancy, Jean-Luc, Communovirus, disponível em https://www.liberation.fr/debats/2020/03/24/communovirus_1782922
Virilio, Paul, O Espaço Crítico, 1ªed., Editora 34/Nova Fronteira, 1993, Rio de Janeiro
Žižek, Slavoj, Pandemic. Covid-19 shakes the world, 1ª ed., OR Books, Nova Iorque