o vestido
para a R. D.
A encomenda chegou a meio da manhã. Foi por acaso que a recebeu, já que a essa hora costumava estar a despachar relatórios, a analisar projetos, afundada num sem número de burocracias em forma de papel. Mas nessa noite dormira mal, sonhos agitados e decidira ir mais tarde para o trabalho. A encomenda vinha da China e ela não conhecia ninguém na China. Ou antes, tinha uma amiga em Macau, mas era evidente que não fora enviada por ela. A encomenda vinha de Pequim e o remetente era um tal Jūnyáo.
Deixou a caixa de papelão, que calculou ter uns regulamentares 25 x 18 x 12 cm, por abrir em cima da mesa da sala. Estava com pressa e ainda tinha de caminhar até à estação do comboio que a levaria até ao escritório no centro da cidade. Aproveitava sempre para ler durante a viagem, ultimamente no kindle por questões práticas, embora preferisse os livros em papel. Lia vorazmente e achava que os livros lhe devolviam imagens em que não só se reconhecia, mas também aprendia sobre si própria e sobre o mundo. Encontrava nas obras de escritores de outras épocas, países, línguas, culturas, experiências que lhe pertenciam. Na verdade, fazia até listas de livros que recomendava aos amigos, a maioria de autores contemporâneos e anglo-saxónicos que eles desconheciam. O que se compreendia, dado viver em Londres e eles não. Mas nesse dia não se conseguiu concentrar por aí além na leitura porque a memória é uma fogueira dentro da cabeça e os sonhos dessa noite ainda pesavam algures. Qualquer coisa sobre partir sabendo que havia de voltar. Rostos familiares noutros papéis que não eram os seus. Qualquer coisa sobre fazer algo que sabia que não devia fazer, mas que estava a fazer na mesma. Talvez esses sonhos tivessem a ver com o facto de ter sido professora em tempos e ter reencontrado alguns dos seus antigos alunos no facebook, quase trinta anos depois. Isso tinha-a transportado até à pessoa que fora, ou pelo menos àquilo que recordava desses tempos e também à imagem que eles tinham de si. Era como abrir baús. Escusado será dizer que a coincidência era mínima. As narrativas pessoais são sempre diferentes e perdia-se muitas vezes a tentar perceber qual a mais verdadeira, fosse isso o que fosse. Se calhar, o que interessava era escolher a que melhor se ajustava ao momento. Voltou ao livro.
Uma mensagem de um ex-aluno era especialmente intrigante, ou pelo menos insólita. Perguntava-lhe se sabia o nome de uma professora jovem, pequenina, trigueira, e gordinha, vinda da Faculdade de Letras (e com muitas ideias, sublinhou) onde a encontrara anos mais tarde no bar a trabalhar numa enciclopédia ou algo do género (sic). Essa professora tê-la-ia substituído por um mês quando se encontrava doente. O rapaz parecia fortemente apostado em localizar a professora substituta. Por causa de uma coisa que ela lhe escrevera num teste, disse. Até lhe perguntou se ele tivera alguma paixoneta adolescente por ela, mas não parecia ser o caso. A memória sempre a pregar-nos partidas, a trazer dos recantos mais remotos coisas sem importância ou afinal importantes. Sempre a arranjar maneira de o passado vir ter connosco. Outro ex-aluno a esboçar-lhe um perfil tão perfeito que desejava ter sido mesmo assim. Tão bonita, tão segura, tão acertada nas escolhas. Claro que nada disso importava já, era só à noite, antes do salto nesse vazio apaziguador que é o sono, que as imagens se confundiam, maldosas. O inferno é a memória. Que teria escrito a professora gordinha no teste? O rapaz dissera-lhe que o álcool, as drogas e as demais madeixas azuis de uma juventude ida não tinham feito com que tudo se perdesse. Não deixava de ser difícil imaginar que um adolescente que em tempos fora seu aluno, e de agora não se lembrava, tivesse um passado, como toda a gente. Pensou então na caixa. Seria engano, com certeza. Não conhecia nenhum Jūnyáo e no entanto a encomenda vinha em seu nome, para a sua morada. Deteve-se a pensar como seria ele, mas não lhe ocorria nenhuma imagem.
Os livros, as palavras, às vezes faziam-na chorar. Não porque fossem tristes, mas pela perfeição da linguagem. Como aquele conto do Murakami que reinventava a metamorfose de Kafka e o protagonista era um insecto transformado em homem que se apaixonava por uma corcunda. Nada na vida se comparava a essa perfeição arrepiante dos livros. À perfeição do amor, mesmo quando muito imperfeito, dos livros. O amor incestuoso dos irmãos do deus das pequenas coisas num mundo onde a casta ditava quem se podia ou não amar. Onde o amor mata. O homem enamorado por um peixe-pato em andanças do demónio. E só o título era já uma promessa. A definição de povo em Yu Hua, as vozes de um bilião de corações que chegavam mais longe do que a luz. A peste da insónia de García Márquez, a epidemia da cegueira de Saramago. O dilema de Ishiguro sobre as memórias enterradas e o seu ressurgimento. E outros tantos, perfeitos, nem era preciso ir para os clássicos ou para os anglo-saxónicos que tanto prezava. Talvez isso a perseguisse desde sempre e não a deixasse viver. Uma espécie de inveja, uma falta de fôlego. O quase. O golpe de asa falhado. Quer dizer, a essência do mundo era a imperfeição, o pecado original, dizia-se e deles se gerara o sofrimento humano. O mundo estaria muito melhor sem religiões. Sem perfeição. Talvez a literatura fosse uma praga ou um vírus que infetava pessoas como ela e não as deixava ser felizes. Talvez as pessoas fossem um vírus que deteriorava as coisas do mundo. Desceu do comboio ainda perdida nestes pensamentos.
Procurou no computador do trabalho aquele nome. Jūnyáo. Afinal era um nome comum na China, significava qualquer coisa como jade do rei. Os nomes chineses tinham sempre um significado, dissera-lhe a amiga de Macau. Os pais procuravam o nome ideal para os filhos. Escolhiam-no relacionando-o com elementos como fogo, ou qualidades como lealdade. Jùnyao, o jade do rei. Não adiantava muito. O seu próprio nome tinha um significado de algum modo coincidente, mas só para quem conhecia latim. Não sabia se os pais teriam pensado nisso. Divertiu-se a pensar que havia alguma coincidência entre a sua pessoa, o seu nome e o chinês desconhecido. A sua alma gémea do outro lado do mundo? Há quem procure uma ordem nas coisas. Ela procurava ordenar as coisas. Obsessivamente nos armários, nas gavetas, por cores, tamanhos, formas. Voltava atrás se algo não ficava no lugar. No seu lugar. Calçar sempre primeiro o pé direito, só depois o esquerdo. Enrolar o fio do secador sempre da mesma maneira. Etiquetar situações, dar-lhes um nome, sequenciá-las. Quer dizer, era uma forma de combater o medo, não? De combater o caos. O efeito borboleta. Um homem toca uma campainha que está ao seu lado e um mandarim morre nos confins da Mongólia. Gostava de rever textos, de recuperar móveis antigos precisamente por isso, podia controlar. A imperfeição, os efeitos do tempo. Em criança desenhava bonecos propositadamente imperfeitos para depois poder aperfeiçoá-los. Devolvê-los ao estado de graça, anular a inadequação. Levantou-se e pensou na caixa. De Pandora. Mas não sabia se ainda tinha esperança ou se se limitava a esperar.
Passou assim o dia em divagações. Habituara-se ao clima sombrio de Londres da cor da humidade. Gostava especialmente do nevoeiro, aquela uniformidade pastosa dava-lhe uma espécie de paz. Não que fosse especialmente infeliz ou angustiada, mas era o desencanto. Andava perpetuamente atrás de outra coisa ainda, essa coisa que é linda, como no poema de Pessoa. A mãe costumava dizer-lhe desde sempre que era uma criatura insatisfeita. Como se fosse culpa sua. E por vezes achava que sim, que tinha culpa e tentava esforçadamente a satisfação. Havia, no entanto, uma coisa feroz dentro de si que a obrigava a olhar de frente.
Chegou a casa e abriu a caixa. De dentro saiu um espantoso vestido de noite preto, com um grande decote nas costas. Uma borboleta bateu as asas em Londres. Algures em Pequim uma mulher ficou subitamente nua.