dá-me de volta o amor, mesmo riscado e contaminado, dá-me o que importa, e o que não importa, o silêncio penhorado, e o musgo da sombra, que levaste no presépio da alegria, oh, dá-me o tempo das searas, e o pão que devíamos ter amassado, na poesia da nossa cama, dá-me a destreza de ter aguentado, o pneu furado a guinar para a esquerda, na curva da direita, sempre que discordávamos, a ver se consentíamos a mesma direcção, sem irmos, afinal, mais longe do que isto, rezando com os gatos, prendendo a tristeza, aos pés desta deusa, que sempre nos perdoou, as horas no sofá, a esquecer que tudo isto, como tudo o resto, passa e acaba.
não posso deitar a mão a estas coisas, seguem funâmbulas, no cordame esfarrapado da poesia, às vezes íngreme, às vezes rasteiro, conforme nos serpenteiam as asas, ou nos encomendam as palavras, minuciosas coincidências, tiradas do almanaque, com que nos aparecem, assegurando
o futuro, se há razão em haver primavera na primavera, e verão no verão, mesmo que depois, como sabemos, o outono no outono, e o inverno, sempre o inverno, no bolso constante do meu peito, como um desalento marsupial, crescendo à beira do coração, aprendendo-lhe a língua quente, para o calar, se houver romaria, no largo do amor.
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Daniel Gonçalves nasceu em Zurique, Suíça, em 1975. Cresceu em Santo Tirso, estudou em Braga, vive na ilha de Santa Maria, nos Açores, desde 1999. É, portanto, uma árvore com raízes helvéticas, tronco tirsense, ramos minhotos e copa atlântica. Publicou o primeiro livro de poesia em 2000, prémio revelação de poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Criou a Confraria do Silêncio para fazer os livros de que gosta, sem as regras que detesta. O seu maior feito lírico e natural, contudo, é ser pai da Margarida, da Catarina e da Maria Inês.