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Recensão de um livro de Samuel Pimenta
Por Maria João Cantinho Publicado em Literatura, Portugal, Recensões a 26 de Dezembro, 2020 1335 palavras
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As constelações existem

para extinguir a solidão

das estrelas.

Samuel F. Pimenta

 Samuel Pimenta regressa à poesia com Ascensão da Água, obra que recebeu o Prémio Literário Cidade de Almada em 2019 e que foi publicada pela editora Labirinto em 2020. Antes deste livro, havia publicado uma obra de ficção intitulada Iluminações de uma Mulher Livre. Há nesta obra uma continuidade dos temas pagãos que já se adivinhavam na obra anterior, uma mística que irrompe poeticamente, revelando um universo muito peculiar e arredado da poesia que se vai fazendo actualmente e que tem mais a ver com uma linhagem metafísica da poesia.

Composto por 48 poemas, começa assim o livro, com o poema Foz: “Falo-te da condição dos rios/do gelo das montanhas/e dos peixes/dos seixos e escarpas/que ainda dobram as minhas águas.//Falo-te das florestas/dos percursos ocultos/[câmaras subterrâneas que esculpi]/das vidas a quem dei de beber.” (p. 5). Esta condição de fala da matéria é a que se funde com o eu lírico, reclamando uma voz poética capaz de dizer a natureza. É também uma voz que vê o mundo e a linguagem como revelação: “E tu revelas-me o encontro azul das águas/o movimento das vagas/o sopro do sal.”. A linguagem cristalina, e rica em prosódia, de Samuel Pimenta vai sempre ao encontro da natureza, mas de uma natureza mística e carregada de simbolismo, procurando a libertação, como ele diz nos versos: “Já não sou rio nem margem./Sou líquido com asas a crescer no horizonte.”. É aliás esta a condição de todo o livro, a de um movimento ascensional, que é o da água, que vem à superfície, mas também a da voz poética que se eleva a partir da matéria.

E esta água, que ascende do mundo ínfero, é a dos rios, ou melhor, do rio que atravessa o mundo subterrâneo para chegar à superfície. Evoca-se um outro rio, o Letes, onde somos conduzidos pelo barqueiro Caronte, no poema Travessia (p. 7). A morte aparece aqui de forma recorrente, assinalada pelo rio e pelo mundo subterrâneo, mas também pela presença espectral das parcas, como no poema «Aviso das Parcas». Ou, ainda, na presença do Minotauro, que é “apenas um homem em sofrimento” (p. 10). Samuel Pimenta convoca toda a mitologia ligada à água, indo beber às fontes primordiais, como a mitologia grega e romana e, ainda, a mitologia celta, como no poema «Ophiussa», entre outros. Esta carga simbólica que impregna o livro confere à sua linguagem um tom enigmático e que traz à sua escrita um ineditismo no campo da poesia actual, conformando uma voz singular.

Há uma invocação de forças sobrenaturais, como no poema «Invocação»: «Digo as palavras antigas/terra fogo ar água/e os primeiros nomes do mundo(…)» (p. 39). A teoria mágica da linguagem – e da sua imediateidade – apresenta-se neste poema, em que o poeta invoca os ancestrais para redespertar a carga mágica dos nomes. Sobre essa característica dos nomes, diz Walter Benjamin: «O nome é aquilo por meio do qual nada mais se comunica, e em que a linguagem, nela mesmo e em absoluto, se comunica. No nome, a essência espiritual que se comunica é a linguagem.»[1]. Os nomes comunicam a essência espiritual das coisas. E o nome, «como parte do legado da linguagem humana é, assim, o garante de que a linguagem é, por excelência a essência espiritual do ser humano» (Ibidem). No acto adâmico de nomear, Samuel Pimenta visa precisamente esta função da linguagem, a do redespertar da espiritualidade do mundo e da linguagem. E esse poema conclui da seguinte forma, lançando a ponte entre linguagem e história: «Pois só assim haverá história/para quem ainda não nasceu.» (p. 39). Também a história se coloca ao nível da espiritualidade convocada para a linguagem.

História, linguagem, caminho, num sentido místico, povoam os poemas de Samuel Pimenta, bem como os «caminhos» da água, do mundo ínfero e escuro para a superfície luminosa e redentora: «a água é luz liquefeita/e tudo o que toca reverbera». Uma poética da luz, mas em que também nos fala de solidão dos elementos no universo: «As constelações existem/para extinguir a solidão/das estrelas.». E. todavia, há outros vectores a considerar, como a recorrência ao mundo feminino, tão presente no poema «As Senhoras», como fonte da ressurreição: «Mas às senhoras deu a Terra/o poder da ressurreição./Deram-me leite de beber/sibilaram-me o destino/e afastaram os inimigos/para jamais voltarem até mim.// E eu pude resgatar por fim/a minha alma imortal.». Essa presença do feminino e do seu universo aparece também nos poemas «Alquimia» e em «O cabelo merece o espaço que ocupa», mas um feminino mais relacionado com a metamorfose e a magia: «Cresceram-me os fios negros do cabelo/serpentes caindo-me sobre o rosto/reclamando o território do meu corpo.//Voltei a ser selva/soberano protegido pelas víboras/irmão dos cavalos das longas crinas.» (p. 31).

Neste universo, revela-se, como já foi referido, um entendimento do mundo que é da ordem da hierofania, da encarnação e da revelação do sagrado. A atentar numa perspectiva como a de Mircea Eliade, «Uma árvore ou uma planta nunca são sagradas como árvore e planta, mas são-no pela sua participação numa realidade transcendente, são-no porque significam esta realidade transcendente»[2]. É precisamente esta relação de participação e de significação que se inscreve no símbolo e que aqui se apresenta. E o símbolo aponta para essa tensão que se apresenta nas imagens poéticas, entre o sagrado e o profano. Como diz Walter Benjamin, «é o instante místico, no qual o símbolo absorve o sentido no âmago mais oculto, por assim dizer na floresta, da sua interioridade»[3]. É deste modo que Walter Benjamin vai ressaltar a positividade do símbolo, isto é, a sua condição de catalisador da epifania. O símbolo é símbolo precisamente por participar daquilo que representa. É o que nos diz Samuel Pimenta: «Lembro aquela luz/era tanta luz/e de me saber entre o êxtase e o espanto.//Primeiro veio o esquecimento./Depois o desejo.//Por fim, o medo.//Não era luz, o que eu via./Eram os olhos da serpente.» (p. 13). É precisamente da serpente do paraíso que Samuel Pimenta nos fala neste poema. Também a metáfora da água não se esgota, nos múltiplos sentidos que ela assume, bem como o tempo nunca aparece na sua dimensão profana, mas sim mística, assumida logo no primeiro poema: «Falo-te do tempo que demora um grão de areia a nascer.» (p. 5). Remetendo para dimensão eterna do tempo, com a alusão à fala, também ela espelho do verbo, a condição poética assume o gesto demiúrgico da nomeação. Condição que se repete no poema ««Invocação» (p. 39). A própria metáfora da ascensão remete para essa hierofania, de ligação entre o mundo profano e o mundo transcendente. No gesto que estabelece essa ligação inscreve-se essa dimensão mística que confere um significado simbólico a todos os elementos matriciais do poema.

A poesia de Samuel Pimenta, ou melhor, este livro, é um objecto inquietante, que desafia a nossa leitura. É pena que este livro tenha passado pelos pingos da chuva sem ter tido atenção da crítica, mas os seus leitores serão os vindouros.

Maria João Cantinho


[1] Walter Benjamin, Linguagem, Tradução, Literatura, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2015, p. 13.

[2] Mircea Eliade, Tratado da História das Religiões, ed. Asa, Porto, 1997, p. 403.

[3] Walter Benjamin, «Símbolo e alegoria no Romantismo», Origem do Drama Trágico Alemão, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 180.

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