Henrique Levy é licenciado em Língua e Cultura Portuguesa pela Faculdade de Letras de Lisboa, tem uma pós-graduação em Linguística Portuguesa e um Mestrado em Estudos Portugueses com uma tese sobre Florbela Espanca (1999). É poeta e romancista, cidadão português com nacionalidade cabo-verdiana e tem vivido em diversos países da Europa, Ásia, África e América. Vive atualmente na ilha de S. Miguel, Arquipélago dos Açores. É autor, na poesia de: “Mãos Navegadas” (1999), “Intensidades” (2001), “O Silêncio das Almas” (2015), “Noivos do Mar” (2017), “O Rapaz do Lilás” (2018), “Sensinatos” (2019) e “Estado de Emergência” (2020) em coautoria com Ângela Almeida; no romance publicou: “Cisne de África” (2009), “Praia Lisboa” (2010), “Maria Bettencourt – Diários de uma mulher singular” (2019) e “Segredo da Visita Régia aos Açores” (2020).
Numa caraterização geral, e abrangente, disse Inocência Mata da obra de Henrique Levy: “Todas as suas obras revelam-se como uma busca total do sentido da vida, uma visão de amor intensamente envolvente que é total: cultural, espiritual, mental, amorosa (incluindo a vertente corporal)” (In Prefácio de “Sensinatos”, p 7). Ver-se-á como as palavras da ensaísta se adequam ao livro de que irei falar, e como nele também se integra o que Inocência Mata acrescenta relativamente a esta produção literária de onde sobressai: “a dignidade dos grandes temas que se actualizam nos pequenos actos do quotidiano” (Idem, p 11), mas onde detetamos igualmente acentuadas marcas de um lirismo: amoroso, sensual, social e histórico, marcas essas que levam Miguel Real a afirmar deste autor que: “No campo do romance, ostenta uma voz singular, de timbre camiliano.” (In Prefácio a “Noivos do Mar”, p 9).
No que diz respeito à obra romanesca de H.L. convém enfatizar que nenhum dos romances por ele já publicados se insere na contemporaneidade: ao nível da temporalidade, o enquadramento narrativo procurado é sempre na dimensão do passado. No caso d’ “O Segredo da Visita Régia aos Açores”, a ação decorre entre os últimos anos do reinado de Carlos I e os primeiros da 1ª República. Aqui, a narração, quase sempre feita no feminino, excetuando dois capítulos em que o marido da narradora toma a dianteira e imprime o seu olhar em dados momentos do vivenciado, a narração, dizia, foge ao romance fragmentado, sem, contudo, optar por uma linearidade exclusiva, já que são várias as analepses e os resumos, que imprimem à ação um forte dinamismo, aumentado por vezes pela alternância de cenas outras ou de registos, como por exemplo, as lucubrações de matiz filosófico (exº: pp 58-59), as descrições da vida urbana, os atos de uma sexualidade repleta de plenitude e autenticidade, etc. Outro aspeto estilístico interessante neste livro deve-se ao facto de existirem fortes marcas de um registo Romântico, muitas vezes mesmo Ultrarromântico, mas entrecruzadas com cenas assumidamente realistas, que vão desde a minúcia das receitas culinárias à caraterização exaustiva de uma perturbação obsessivo-compulsiva (exº: p 34), passando pela descrição de ambientes, como por exemplo o do Teatro de Ópera S. Carlos em Lisboa, e, também, uma miríade de situações assinaladas por ironia e mesmo por um acentuado humor, vejam-se, por exemplo, as páginas 64-65, onde a narradora, no seu delírio culposo, “vê” o cadáver do marido (Vaz-Castro, prestigiado par do Reino) insurgir-se contra o facto de ela ter escondido a bandeira da República dentro do seu caixão.
O livro de que me ocupo aqui, e onde o nome da narradora jamais é referido, apresenta-se-nos como uma urdidura onde se entrecruzam as vertentes: social, política, cultural e económica. O cerne da ação inicia-se quando ela, que irá com o marido acompanhar a comitiva régia (de D. Carlos I e Dona Amélia) numa visita ao arquipélago dos Açores, se vê subitamente envolvida numa trama inesperada, já que preparando as várias indumentárias para tal viagem, e encontrando-se na oficina da sua chapeleira, é surpreendida por uma rusga que procurava conspiradores republicanos naquele atelier, estes, por sua vez, e porque naquela casa escondiam uma bandeira da república, decidem esconder o dito objeto na caixa de um dos chapéus que a narradora tinha ido ali levantar. Sucede que, por uma série de vicissitudes, a bandeira acaba por “viajar” também até aos Açores, de onde regressa dentro do caixão de Vaz-Castro, o marido da narradora, que, entretanto, morrera de doença súbita naquele arquipélago. Regressadas a Lisboa, quer a bandeira, quer a narradora, esta última é surpreendida pelos eventos políticos que acompanham o fim da monarquia, nomeadamente o assassinato do rei e do príncipe herdeiro, que a fazem temer pela sua própria segurança, assim, certo dia decide ir devolver a bandeira à já citada chapeleira, contudo, durante o percurso depara-se-lhe, em plena Praça do Município de Lisboa, tremendo alvoroço que pretendia hastear a bandeira da república no edifício da edilidade, como forma de afirmação do novo regímen político, só que os revoltosos não tinham à mão bandeira alguma, e é a nossa narradora que lhes resolve o problema, cedendo-lhes a que ela ia devolver e que, entretanto, tirara da caixa do chapéu, gesto que fez com que aqueles que a ladeavam ficassem confusos ao verem a esposa de um antigo par do reino possuir uma bandeira da república. Convém, no entanto, acrescentar que durante o tempo em que a bandeira permanecera na sua posse, ela havia bordado nas suas quinas, as seguintes letras: c I r p (Carlos I Rei de Portugal), pelo que, ao nível simbólico, o regime republicano acabava por se implantar com as reminiscências da monarquia agarradas a si.
Neste período de efervescência social e política, ganha particular relevância a caraterização, sobretudo a nível psicológico, das personagens, sejam elas pertencentes às classes baixas, como a criada Ester ou o cocheiro Tolentino, sejam os poderosos latifundiários como o pai dela, ou ainda as envolvidas na ação política como Luciano de Castro, Basílio Teles, Adelaide Cabete, José Relvas e Carolina Ângelo, nome que disfarça uma outra médica importante da época. Relativamente às vertentes cultural, social e económica da altura, Henrique Levy faz um levantamento exaustivo de todos esses aspetos: profissões (exº: pp 95-97), estatuto da mulher (exº: p 10, pp 72-73), fetiches (exº: pp 44-45), religiosidade (exº: p 41), aliás, é exatamente na questão socioeconómica que um episódio assoma, refiro-me à luta entre Zé do Cano e o patrão (pp 101-104), episódio este que traz à colação momentos de lutas entre classes, como os que poderemos encontrar em romancistas de outras escolas como Alves Redol ou Ferreira de Castro, tal cena poderia fazer perigar a coerência estilística da narração, coisa que não acontece tal a arte com que o autor procede ao encaixe das diversas vivências.
Henrique Levy, e à guisa de conclusão, prossegue neste seu romance aquilo que tem sido a marca de água da sua produção literária e que Inocência Mata tão bem viu nos dois excertos já por mim assinalados: a procura do sentido da vida através dos grandes temas que se vão atualizando nos pequenos atos do quotidiano, quer estes temas sejam o amor – sempre total e absoluto, como refere a ensaísta (exº: 19-22, pp 44-45), a justiça, a liberdade ou qualquer outro do mesmo quilate. Neste sentido, o “Segredo da visita régia aos Açores” é um livro que, a partir de uma história singular, fala de todos nós, se universaliza, articulando pertinentemente uma certa ludicidade com aquilo a que poderei chamar uma propedêutica da autenticidade, alertando-nos para tudo aquilo que, no nosso estar-aqui, é essencial quando está em causa o necessário escape às diversas alienações e aparências que a contemporaneidade insiste em nos fazer viver.
Victor Oliveira Mateus
Foto de Fernanda Sequeira