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Raul Bopp e o modernismo no Rio Grande Do Sul
Por Jose Eduardo Degrazia Publicado em Brasil, Ensaio, Literatura a 16 de Dezembro, 2020 4165 palavras
Crónicas de um tempo e lugar íntimos Anterior Solveit Seguinte

        Grande parte dos trabalhos que se dedicam a analisar a obra de Raul Bopp (1898-1984), mencionam o fato do poeta ter nascido no Rio Grande do Sul, episodicamente. Isto é, todos dizem que o poeta nasceu na Vila Pinhal, município de Santa Maria, perto de Tupanciretã, no ano de 1898; nessa última cidade passou a infância e adolescência para depois tornar-se um viajante inveterado. Desde os dezesseis anos andou pelo mundo começando por uma viagem a cavalo para a Argentina. Depois de conhecer a Amazônia escreveu o famoso Cobra Norato1 (1931), influenciado pelo movimento Antropofágico de São Paulo capitaneado por Oswald de Andrade.

        Teve inúmeras atividades profissionais, e, frequentando cada ano da faculdade de direito em capitais variadas do Brasil, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belém, estava o poeta em 1921 nesta última capital, quando, influenciado pelo impactante conhecimento da floresta amazônica, e, tendo lido o livro de lendas daquela região de Antonio Brandão de Amorim, Lendas em nhengatu e português, o Selvagem, de Couto e Magalhães, e O poranduba amazonense, de João Barbosa Rodrigues, começou a elaborar o poema mais importante da fase antropofágica do movimento modernista brasileiro. Lendo-se os estudiosos literários que tratam desta fase como Mário da Silva Brito2, Wilson Martins e outros, vemos que a preponderância paulista é total, nada deixando para a participação dos autores das províncias do mesmo período, vistos de antemão como a reboque do carro-chefe paulistano. Para mostrar o predomínio da intelectualidade da capital paulista, diz Mário (Brito, 1958), p. 178: “O São Paulo metropolitano aparece-lhes, sempre, como exemplo do que poderá ser ou vir a ser o Brasil. A situação presente de São Paulo é a medida porque, no desejo de seus intelectuais e artistas, se deve avaliar o resto do país. O Brasil tem, assim, consoante pensam, uma missão a cumprir: a de alcançar o estádio atual da civilização paulista.” 

        Em livro de 1968, no entanto, onde antologia a poesia modernista, Poesia do Modernismo3 Mário da Silva Brito abre uma janela para entender o modernismo gaúcho a partir do regionalismo, quando analisa a poesia de Augusto Meyer, p. 193:  “Foi, a princípio, poeta ligado à doutrinação verdeamarelista, se bem que, mesmo os seus versos regionais, localistas, de fixação da alma, temperamento, costumes e folclore gaúchos, já transcendessem de mero apego à terra, e trouxessem assim, uma nota de fantasia e lirismo, manifestado pela ingenuidade e pela contemplação da natureza, pelo encantamento subjetivo. Ao seguir as diretrizes regionalistas dos grandes centros, estava antes se integrando numa tradição gaúcha que vinha de longe, (…)”. 

        Sem querer minimizar a importância do movimento da Semana de Arte Moderna de São Paulo, comandada por Oswald de Andrade e Mário de Andrade, da qual o próprio Bopp dá inúmeros depoimentos em seu Movimentos modernistas no Brasil4 é, sem margem de dúvida, ter sido minimizada a formação intelectual do poeta ainda em nosso Estado. De formação simbolista/parnasiana, a primeira produção deixa pouco vislumbrar o poeta do poema amazônico, do poeta do principal poema da fase antropofágica do movimento modernista brasileiro, Cobra Norato. Mesmo que alguns desses poemas sejam bons, na medida antiga, e mereçam ser lidos. Ele mesmo diz que seus poetas preferidos eram os poetas “românticos” Zeferino Brasil, Marcelo Gama, Alceu Wamosy, Eduardo Guimarães. Na antologia Putirum5 temos inúmeros poemas da década de 20 do século XX, simbolistas e parnasianos.

        No mesmo livro anteriormente citado (Raul Bopp, 1966), diz, mencionando Moisés Velhinho e Agusto Meyer, p. 56: “ ‘O modernismo entrou no Rio Grande do Sul sem estardalhaços, sem barulho, quase imperceptivelmente’ no dizer de Moisés Velhinho. A esse respeito Augusto Meyer observou que o ‘Regionalismo preparou terreno para a tarefa da geração dos modernos, nos quais é evidente o ponto de convergência entre o modernismo e a tradição regionalista’. A revista Madrugada (1929), reunindo um grupo de poetas e escritores, que se inspiravam nas tradições locais ou no estilo de vida gaúcha, teve forte influência na formação de vanguarda desse Estado”. 

        O poeta que conviveu com o grupo dos cinco, grupo regionalista formado por Aureliano de Figueiredo Pinto, André Carrazoni, Olmiro Azevedo, e Márcio Dias, mas não nos relata de que forma teria sido influenciado por esta convivência. O primeiro, autor de Romances de estância e querência6, é um dos mais notáveis poetas da nossa poesia regional, e, temos em Itinerário – Poemas de cada instante7, a matriz simbolista de que era forjado. Olmiro Azevedo, foi um poeta regionalista diferenciado, de características simbolistas, mais preocupado com a natureza da região serrana do Rio Grande do Sul do que com aspectos épicos, no seu livro Veio d’água8, de 1925, mostra muitos pontos em comum com a visão boppiana, como no verso do poema Veio d’água “Tinha queixas musicais no embate das pedras”; o poema está no livro de Donaldo Schüller, A poesia modernista no Rio Grande do Sul9, p. 31. Noutro livro, publicado depois da morte do autor, Vinho velho10, diz no poema Vale das antas, p. 25: “Plena serra. Montes altos./Há cumeadas entre nimbos./E há contornos que sugerem ancas.”  Mas isto é ainda pouco para vermos alguma influência regional gaúcha na poesia de Raul Bopp. Precisamos trazer o trabalho de Ligia Averbuck, estudiosa do Poeta, que no seu livro Cobra Norato e a revolução caraíba11, diz, pp. 76-77: “No caso da poesia de Bopp, a par destes aspectos, o que é possível, nesta fase inicial (e que se consubstanciará, claramente, a partir das mudanças operadas por força da influência modernista), é a impregnação local, perceptível sobretudo na escolha dos aspectos rurais brasileiros, na série de cidades, lendas, tipos e sátiras políticas. A valorização da terra e da paisagem, o apego às tradições locais e às origens, caracterizam, em oposição a uma visível atração pelo exótico, esta fase poética”. A Autora, ao analisar o poema Mangoré diz, logo a seguir: “Textos como o do soneto ‘Mangoré’, ao historiar as origens da raça gaúcha, são regionais no sentido amplo da palavra”. E continua a Autora: “Na expressão épica, revela-se a força da terra e a aproximação com o popular e com a tradição (marcas da vivência gaúcha da campanha), que plasmaram desde cedo o caráter de Bopp e que são, ao mesmo tempo, expressão daquele caráter regional que tem identificado a literatura gaúcha”. Vamos mostrar o soneto comentado por Ligia Averbuck, da antologia copilada por Augusto Massi, Poesia completa de Raul Bopp12, p. 109, para vermos como a história e a paisagem do pampa, estavam dentro da concepção poética do autor:

MANGORÉ
      Triste, o índio Timbu sofre um mal que o domina:
      viu com olhos de amor Dona Lúcia Furtado.
      Ele, o conquistador, desta vez conquistado
      pela pompa boreal de uma mulher latina.
      Ferido com o olhar, freme em ânsia tigrina.
      Mangoré nunca amou, e agora ao tê-la amado,
      arfa, deseja e a quer, mas quer tê-la a seu lado,
      custe a luta no pampa, o ódio, a carnificina!
      Guerra! Don Nuno Oreste e os seus de lança em riste,
      defendem Dona Lúcia e a tribo vai tombando.
      Fica o reduto em ruína e em chama o Corpus Christi.
      Dama de alto valor, quantos males fizestes!
      Por vossa raça, aqui, ainda hoje andam lutando
      Tribos Mangorés, heróis como Nuno Orestes! 

        Vamos procurar noutros poetas gaúchos, do início do século XX, as raízes do Modernismo no Rio Grande do Sul. Em Vargas Netto e em Ernani Fornari, que Raul Bopp não cita como de sua convivência direta, é que devemos procurar a mesma essência criadora do poeta antropofágico. O primeiro autor citado, o excelente poeta regionalista Vargas Neto, publicou dois livros fundamentais de nossa poesia nativista, o primeiro, de 1925 – Tropilha crioula13 – mostra uma cosmogonia ligada diretamente ao referencial campeiro. Livro ainda ligado aos moldes parnasianos e simbolistas, dele nos diz Donaldo Schüller, no seu livro A poesia no Rio Grande do Sul14, p. 147: “A cultura pastoril abarca imperialisticamente a realidade inteira. A cotidiana lida com o gado fornece a linguagem para a descrição dos fenômenos cosmológicos”. É no livro seguinte, Gado xucro15, de 1929, que o poeta Vargas Netto se aproxima da visão cosmogônica e mítica, na interpretação da lenda da unidade do homem e da natureza, mantendo-se, no entanto, com uma postura ligada ao passado, sem tirar disto uma dimensão que o ligue com o futuro, diferentemente de Raul Bopp que, em seu poema amazônico, tenta forjar através do mito e da floresta o embate para uma nova experiência de brasilidade, projetando para o futuro a relação entre a natureza e as raças formadoras da nacionalidade. Vargas Neto é um perfeito exemplo que liga o regionalismo gauchesco com o modernismo, principalmente no segundo livro em que usa formas livres. É um autor que se identifica totalmente com a natureza e dela não se separa. Sua visão é passadista e não tem visão mais abrangente sobre os fenômenos formadores da terra rio-grandense. Poderíamos citar do seu segundo livro, o verso que abre a tropa dos poemas, Gado xucro, p. 75: “Traz o ruído do trovão sempre nos cascos/pronto a arrebentar…E a morte vem luzindo em cada chifre/que lanceia o ar…”. Pode se ter esses versos como exemplos de utilização de imagem anímica e antropomórfica na comparação entre os poemas livres e o gado xucro.

        Desse período estudado, diz Vanessa Oliveira Juliani Regina, no seu trabalho A poesia na revista alegretense Ibirapuitã (1938-1939)16, p.16: “Dentre as principais obras desse período destacam-se: Lanterna verde (1926) de Felipe de Oliveira; Trem da serra, de Ernani Fornari; Tropilha crioula (1925), de Vargas Neto; e o Coração verde (1926), Giraluz (1928), e Poemas de Bilu (1929) de augusto Meyer. Fischer (2004) considera Augusto Meyer e Theodomiro Thostes representantes centrais do modernismo sulino. Já Tyrteu da Rocha Viana, com a obra Saco de viagem (1928), e colaborador do periódico Ibirapuitã, caracteriza a forma mais radical da estética modernista já experimentada No Rio Grande do sul.”. 

        Tyrteu da Rocha Viana (1898-1963) no seu livro Saco de viagem, de 1928, – a edição que tenho é a comentada por Itálico Marcon, 2° edição17. O poeta e crítico diz do poeta Tyrteu, p. 11: “Já na primeira leitura, com o vagar necessário, no mesmo dia, firmamos a convicção: fazia-se visível a outra face, até então ignorada, da poesia modernista do Rio Grande do Sul, sobremodo radical, subversiva e inovadora, ligada a Qorpo Santo, Marinetti (futurismo), Trilussa e Oswald de Andrade. A mais fiel ao espírito iconoclasta da Semana de Arte Moderna de 1922, sem perder, contudo, a sua incontroversa originalidade.” Infelizmente, essa obra passou quase desconhecida até o seu redescobrimento por Itálico Marcon. Teria ela influenciado a história do modernismo gaúcho? Acredito que não. Mas não cabe aqui, nesse artigo, aprofundarmos esse assunto. Assinalamos, no entanto, sua importância como desbravador do futurismo e do modernismo entre nós.  Gostaria, apesar de ser longo, de transcrever aqui um poema que poderia ser dito futurista na linguagem, mas de origem regional no tema, e, ainda por cima, dedicado a Raul Bopp, em Saco de viagem, p. 47: 

NO GALPÃO
       (A Raul Bopp)
       Lá fora o patrão D. Inverno
       Mais D. Frio e seu capataz Minuano
       Mais a peonada deles feita de pingos de garoa
       Iam repontando
       A manada retacona dos peães
       Do pasto alto das noturnas calaveiragens pelos ranchos
       Da vizinhança grávida de gurias cubiços palpáveis
       Para a mangueira das 4 paredes do galpão
       E à roda do fogo D. Chimarrão os pastorejava
       Formados
       Seu Tibúrcio era o contador de histórias de plantão
       Sia Dona Conversa foi vindo vagarosa e lerda
       Como a baia aguateira lunanca
       E pela boca desdentada do Aurélio chegou-se
       Na história recente dos fantasmas assombradores
       Do posto de rodeio das bragadas
       Houve risadas mui reticenciais dos circunstantes
       Largas longas e cortantes como facão marca touro
       E D. Silêncio chegou montado no pschit
       Do capataz bandaoriental D. Fulano
       Seu Tibúrcio mandou D. Silêncio à fava
       E foi se defendendo na maciota
       Retrucão a fechar um crioulo filado
       Mas não foi eu que o sobreintendente
       Ia prender na cadeia
       Como desencaminhador da fia mais moça
       Da sia Dona Anaia
       E o pai do aleijadinho
       E logo em seguida
       Deu vontade de fazer pipi no capataz
       Bandaoriental D. Fulano
       Peleador de amores impúberes abafados 

        Esse poema do Tyrteu da Rocha Viana tem muito a ver com os poemas de Urucungo que estão em Putirum. Teria Raul Bopp conhecido o poeta futurista? Teria lido o poema a ele dedicado? Segundo Itálico Marcon (Marcon, 1993, p. 17), os modernistas gaúchos da revista Madrugada não teriam tomado conhecimento, ou não o teriam entendido, condenando o poeta ao silêncio e à obscuridade. Diz Itálico Marcon, na obra citada, p. 18: “A nossa geração modernista, capiteneada pelo aliciante Augusto Meyer, mais adaptação e prolongamento que efetiva renovação, de todo um processo iniciado pelo Simbolismo e pelo Regionalismo, não soube compreender e muito menos valorizar a autêntica revolução copernicana que significou o inovador e subversivo Saco de Viagem.”   

        Devemos buscar em Ernani Fornari certos pontos de similaridade, que não escaparam ao maior estudioso da poesia do Rio Grande do Sul – Donaldo Schüller – com o poeta de Cobra Norato, Raul Bopp. Trem da serra18 livro de 1926, acessado no artigo de Antonio Marcos V. Sanseverino, na Revista brasileira de literatura comparada19   n° 18, de 2011, p. 156, a poesia de Ernani Fornari tem imagens como esta: “Capões … Sangas… Cascatas anônimas na geografia…/árvores respeitáveis, de longas barbas veneráveis,/abanam as barbas para o trem…” Donaldo analisa o antropomorfismo, a visão mítica e o ludismo da viagem do autor do Trem da Serra. Diz mais Donaldo Schüller, livro citado, p. 155: “Ao produzir Trem da serra, Ernani Fornari se inscreve numa tradição épica que vem de Antonio Chimango a Cobra Norato para ficarmos apenas no espaço dos primeiros trinta anos deste século. A viagem aproxima os três poemas. Ernani Fornari substitui a tropeada de Amaro Juvenal pelo deslocamento do comboio. Raul Bopp faz a paisagem amazônica desfilar aos olhos de um animal mítico antropomorfizado. Não haverá raízes rio-grandenses na mobilidade do poema de Bopp, tão característica dos homens do sul e também central nos dois poemas mencionados?” A nossa resposta é afirmativa. Já Guilhermino Cesar, em artigo no jornal Correio do Povo, 1960, na antologia Putirum antes citada, diz, na p. 177: “Filho de um Estado, onde o falar regional tem muito caráter seria natural que Bopp sobrecarregasse o poema de gauchismos vocabulares, ou pelo menos que os gauchismos aí predominassem.” E adiante: “O vocabulário por exemplo, que se utiliza, é uma resultante de várias áreas regionais, mas dá gosto ver como tudo foi assinalado afetivamente com uma prodigiosa intuição criadora”. Guilhermino Cesar vê muito bem que a poesia de Raul Bopp é esse amálgama do linguajar gaúcho com a fala interiorana dos brasis.

TUPANCIRETÃ, ANÁLISE DE UM POEMA
A mobilidade da poesia de Bopp está na viagem, no mundo grande, nas terras do Sem-Fim, mas também nas pequenas cidadezinhas do interior do Brasil, como a sua Tupanciretã. Nesse poema podemos encontrar as raízes da imagística do poeta, partindo do mais interior da sua terra, vamos copiá-lo, da antologia Poesia completa de Raul Bopp, p. 333, para podermos entender melhor:

TUPANCIRETÃ 
       A princípio eram campos da propriedade da mãe de Deus.
       Depois não sei como foi.
       chegaram os trilhos. Mudou tudo.
       eram três estâncias, a estação, o barracão do Vê Correia
       e a casa do meu pai,
       com oficinas de arreios e curtume.
       Um dia, me levaram de trem para outra parte,
       estudar tabuada e geografia.
       Quando voltei
       a povoação tinha crescido.
       Já havia luz elétrica.
       A farmácia do doutor Vaz era ponto de reunião
       com vitrola de corda à noite.
       Mas o que eu gostava mesmo
       era ver o trem
       que passava nos fundos do quintal
       e que me ensinava lições de viagens.
       Tempo correu. Cresci. Fui pr’um ginásio.
       Tudo o que aprendi desaprendi.
       As noites boêmias acabavam de madrugada.
       O doutor Catarino fazia discursos
       E o filho de dona Porfíria discutia Haeckel na farmácia.
       Uma outra vez me ausentei. Andei. Não voltei mais.
       A geografia me pegou.
       Virei mundo. Fui para longe. Anos passaram.
       Sons de violões vibram, às vezes, na memória.
       Custou saudade o que deixei. 

        Conforme o dicionário Palavras indígenas no linguajar brasileiro20, de Arnaud Sampaio, pp. 159-160, Tupanciretã é palavra proveniente do guarani, tornada um neologismo pelos jesuítas das Missões, significando “Terra da mãe de Deus”. É também a cidade no Rio Grande do sul onde o poeta passou a infância. Podemos ver que desde as origens o poeta estava vivendo dentro de um tempo mítico, nos princípios, ou como no primeiro verso: “A princípio eram campos da propriedade da mãe de Deus”. Veio o progresso trazendo os trilhos e os trens e o desejo/necessidade de partir, viajar. Para crescer e estudar. Voltar à casa paterna onde se trabalhava o couro, material tão importante na campanha. Mas os trens levam para longe para estudar geografia: “Um dia me levaram de trem para outra parte,/estudar tabuada e geografia.” E quando volta já tinha a luz elétrica, o progresso invadia mesmo aquelas terras longínquas e perdidas do interior. Mesmo assim, vivendo a vida da cidadezinha interiorana, os trens que passavam no fundo do quintal eram convites para o sonho e o distanciamento: “Mas o que eu gostava mesmo/era ver o trem/que passava no fundo do quintal/e que me ensinava lições de viagens.”  Até que a geografia o levou para sempre: “Uma outra vez me ausentei. Andei. Não voltei mais./A geografia me pegou./Virei mundo. Fui para longe. Anos passaram./Sons de violões vibram, às vezes, na memória./Custou saudade o que deixei.”

        Relata Augusto Massi, organizador de suas poesias completas, a ligação de Raul Bopp com o primitivo, o telúrico, e com o indigenismo modificado pelos modernistas de primeira hora – diferente de como os índios eram vistos, na forma realista, descaracterizados e sem nenhuma dimensão mítica, por Monteiro Lobato, por exemplo –, pp. 15-16: “Ao lado de Mário e Oswald, o poeta gaúcho sempre esteve vinculado ao modernismo primitivista, que mergulhou  nas matrizes arcaicas do nosso imaginário. Do fundo da mata virgem, no ventre das terras do sem-fim, por ocasião desta descoberta do Brasil é que nasceram Pau Brasil (1925), Clã do Jabuti (1927), Macunaíma (1928) e Cobra Norato (1931). Sob o impacto das ideias de Freud e Lévi-Bruhl e das aventuras experimentadas da vanguarda europeia, os modernistas souberam incorporar à pesquisa formal tanto o material das narrativas indígenas quanto os elementos da cultura negra, realizando uma fusão perfeita entre o erudito e o popular.”

        Carlos Nejar, no seu monumental História da literatura brasileira21, falando do Cobra Norato, nos fala dessa característica da ligação primeva com a terra, p. 211: “O animismo da terra, o movimento do céu se mesclam a uma intuição ancestral desse Homero do mato, preso às raízes que tomam voz e se carregam de sombras. Seu léxico e ritmo são novos, e faiscantes, sua visão assombrada. Liga-se aos artistas primitivos africanos e, como Picasso, neles achou modelo de criação pelo despojamento, seja pela visão primeva das coisas, ‘as coisas em si’, sem histórias, dentro da religião da noite mais arcana que as suas estrelas.” 

Aqui já se adentra a dimensão do poema amazônico Cobra Norato, que deixaremos para um segundo artigo. 

O poeta viajante: o poeta Raul Bopp foi correr mundo e nunca mais voltou para a sua Tupanciretã da infância. Mas a Terra da Mãe de Deus nunca mais o abandonou.

BIBLIOGRAFIA

1. Bopp, Raul: Cobra Norato em Putirum, Rio de Janeiro, Editora Leitura, 1968.
2. Brito, Mário da Silva: História do modernismo brasileiro, São Paulo, Edição Saraiva, 1958.
3. Poesia do modernismo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
4. Bopp, Raul: Movimentos modernistas no Brasil: Rio de Janeiro, Livraria São José, 1966.
5. Bopp, Raul: Putirum, organização de poemas por Marcelo Miranda, Rio de Janeiro, Editora Leitura, 1968.
6. Pinto, Aureliano de Figueiredo: Romances de estância e querência, Porto Alegre, Editora Movimento, 1997.
7. Poemas de cada instante, Porto Alegre, Editora Movimento, 1998.
8. Azevedo, Olmiro: Veio d’água, Porto Alegre, Globo, 1925.
9. Schüller, Donaldo: A poesia modernista no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Editora Movimento, 1982.
10. Azevedo, Olmiro: Vinho velho, Porto Alegre, DAC-SEC RS e UCS, 1978.
11. Averbuck, Ligia: Cobra Norato e a revolução caraíba, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1985. 
12. Bopp, Raul: Poesia completa de Raul Bopp, organização de Augusto Massi, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 2013.
13. Neto, Vargas: Tropilha crioula e gado xucro, Porto Alegre, Editora Globo, 1959.
14. Schüller, Donaldo: A poesia no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1987.
15. Neto, Vargas: Tropilha crioula e gado xucro, Porto Alegre, Editora Globo, 1959.
16. Regina, Vanessa Juliani: A poesia na revista alegretense Ibirapuitã (1938-1939); acessado em: https://ppgletras.furg.br/images/Dissertacoes_pdfs/vanessa-regina.pdf
17. Viana, Tyrtyeu da Rocha: Saco de viagem 2° ed., Porto alegre, IEL e EDIPUC RS, 1993.
18. Fornari, Ernani: Trem da serra, Editora Globo, Porto Alegre, Editora Globo, 1928.
19. Severino, Antonio Marcos V: acessado em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/181406 
20. Sampaio, Arnaud: Palavras indígenas no linguajar brasileiro, Porto Alegre, Editora Sagra Luzzatto, 1995.
21. Nejar, Carlos: História da Literatura brasileira, Rio de Janeiro, Editora Relume Dumará, 2007.


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