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Crónicas de um tempo e lugar íntimos
Por Ana Paula Dias Publicado em Literatura, Macau, Recensões a 16 de Dezembro, 2020 1007 palavras
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Antes do amanhecer, depois do pôr-do-sol, da autoria de Mu Wei (pseudónimo) consiste numa compilação de vinte e duas pequenas crónicas originalmente escritas em chinês e traduzidas para português por J.W. (pseudónimo), uma edição bilingue da Associação de Estórias de Macau e da Musical Stone Publishing Ltd, editada em dezembro de 2019. Mu Wei escreve como colunista para o Macao Daily desde 2015. O livro é a compilação de algumas das suas peças publicadas anteriormente nas quais, segundo ela, “geralmente regista impressões sobre o quotidiano e o seu estilo de vida”. J. W. é um poeta de Macau, com trabalhos igualmente publicados no Macao Daily e na Voice & Verse Poetry Magazine de Hong Kong. Sabendo que J. W. era proficiente em português e interessado pela tradução literária, Mu Wei convidou-o para traduzir os seus trabalhos, na expetativa, de acordo com as suas palavras, “de que isso ajudasse a partilhar com os leitores portugueses algumas das ideias e da cultura de Macau”.

Para a autora, escrever sobre um lugar surge como motivo para nos fazer olhar de novo e não apenas tomar como garantidos os objetos e as atividades que acontecem ao nosso redor. Nos seus textos, os espaços são vividos e, nesse decurso, são simultaneamente percebidos e imaginados num processo iterativo. Perpassam nestas crónicas diversos locais exteriores e interiores da cidade comum, da rotina, dos modos de vida e também de outros lugares visitados na Ásia que são pretexto para um potencial reflexivo; focada na observação direta do local, procura uma compreensão detalhada (pode-se dizer uma “re-visão”) e esse processo de “re-visão” maximiza as oportunidades de nos vermos no espelho, como parte da narrativa do lugar. Os textos de Mu Wei estão ancorados no espaço de onde despontam e falam-nos dos lugares como experiências subjetivas. A partir do espaço objetivo, do espaço físico da experiência diária (cafés, bares, viagens…), dão ao leitor olhos para ver, um ponto de vista a partir do qual se obtém a sensação de um local, gerando motivos de empatia e identificação.

Trata-se de uma escrita cosmopolita, inteligente e culta (pontuada por alusões que vão dos U2 a Doraemon, de Heráclito e Séneca a Ishiguro, Thoreau, Murakami, Skakespeare, Camus, Eileen Chang…), inscrita no aqui e agora do lugar em que é vivida, que lida também com objetos, situações e ideias, com factos que não existem sem as palavras (encontros, conversas, memórias, sentimentos). Através de metáforas subtis, sinestesias e associações de imagens quase cinematográficas (por vezes, requintadamente irónicas), Mu Wei estrutura sentimentos e leva-nos a descobrir que coisas consideradas privadas, idiossincráticas e até isolantes são de facto características emergentes, conectivas e dominantes. Perpassa esta escrita uma certa melancolia interessada nos paradoxos, ironias e ambivalências inerentes à cultura atual e um questionamento de cariz existencial (veja-se a figuração da morte no texto “ Rolo de macarrão de arroz acompanhado de shaomai e vinho branco”, um exemplo entre outros). A consciência reflexiva da escritora cristaliza uma espécie de continuidade entre a observação do real, o representacional e o abstrato; por exemplo, uma camisa preta e uma camisa branca são pretexto para uma reflexão sobre fiabilidade das memórias ou uma taça de arroz, sobre a permanência daquilo que é estruturante da nossa existência. O exercício da corrida é o ponto de partida para uma interrogação sobre a “forma da felicidade”, o da escrita sobre a possibilidade de inscrição do indivíduo num mapa atemporal que exceda o território que descreve, o da pesca sobre a beleza da monotonia, o uso das redes sociais serve para o questionamento das visões utópicas ou distópicas que construímos para nós próprios e para os demais, entre tantos outros temas que moldam uma conceção contemporânea do que é a vida da cidade e de como as pessoas podem ou não lidar com isso.

É de referir ainda que, apesar de lidar com sentimentos e emoções, esta é uma escrita de onde o pathos está ausente, pouco adjetivada – há como que um distanciamento elegante entre o real vivido e o percecionado e é a sobreposição desses planos que, nos textos de Mu Wei, nos dá o “contorno visível” das coisas que importam e que cobrimos “com papel fino em branco” (“Não me importa”), o nosso Norfolk pessoal onde podemos “encontrar coisas perdidas” (numa referência ao romance de Ishiguro, Nunca me deixes).

Duas notas finais para destacar a excelente escolha do título Antes do amanhecer, depois do pôr-do-sol, que remete com finura para o nexo entre um tempo e um espaço indefinidos, cíclicos, simultaneamente de fim e recomeço, de silêncio meditativo e de conexão dos seres humanos com a sua própria contingência e finitude. No caminho contrário ao deste silêncio significativo, entre o que é e o que será, passamos pela possibilidade da linguagem a comunicar o que aparenta ser pessoal e acaba por assentar na base sobre a qual uma identidade é inconscientemente determinada através de visões e suposições em comum, e através do efeito comum que isso implica – e esse é o espaço da arte. A nota derradeira é para a notável tradução de J.W., por um lado pelo desafio que terá constituído, por outro, por possibilitar o acesso a uma autora que de outra forma nos passaria despercebida e, finalmente, pela qualidade do português escorreito, pelo vocabulário diversificado e pelo equilíbrio a organização frásica ao longo de todo o livro.

SOBRE A OBRA

TÍTULO
Antes do amanhecer, depois do pôr do sol

AUTOR
Mu Wei

ANO
2019

EDIÇÃO
Associação de Estórias de Macau
Musical Stone Publishing Ltd.


Macau


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